Conheci a Cristolândia.
Não, não conhecia. O povo desembarcou em Santos no fim
de agosto, iniciou as atividades, mas não houve a possibilidade de ver de perto
até que as circunstâncias se mexeram de uma forma que tornou a coisa viável.
Sim, estava mais do que na hora de conhecer uma missão Batista, ainda mais para
quem vai para 34 anos do início da formação eclesiástica na Igreja Batista.
A matéria envolvia dependentes químicos. Jornalista
pode especializar-se em um assunto, mas ser monotemático não é recomendável.
Vez ou outra é bom deixar os gramados, as quadras, as piscinas, as pistas, não
sujar as mãos com óleo e pneus, não ficar com a cara afundada no motor.
Conheci o V.
Não, não conhecia. E não vou prosseguir com o nome
dele neste espaço. A primeira letra já é o bastante, uma invasão de privacidade
para mim. Para ele, não.
“Pode colocar meu nome todo e se quiser tirar foto,
fica à vontade”.
“Melhor não, cara. Questão de ética, vamos preservar
sua identidade”.
“Se quiser, eu tiro a foto de boa”.
A orientação ao repórter-fotográfico Cláudio Vitor Vaz
foi de não mostrar o rosto. E o Portuga (porque morou na terrinha) entendeu
perfeitamente. Usou da competência para fazer um jogo de luzes que permitiu
apenas a imagem da silhueta de V. Naquele momento eu nem pensava em outra
imagem. A história de V. rodava na minha cabeça.
V. começou a roubar aos 14 para ter roupas de marca,
motos e pegar umas meninas. Entrou no vício, continuou a roubar, foi flagrado,
conheceu boa parte do sistema carcerário do Estado de São Paulo. Fugiu, saiu na
temporária e não voltou, foi flagrado roubando, entrou por porte de arma, ouviu
as regras da malandragem e não teve problemas. Em termos.
“Dormir lá dentro, você não dorme. Você descansa, mas
não sabe a que horas vai dar uma treta”.
V. foi transferido tantas vezes que a família desistiu
de procurar. Ia a um lugar, ele estava em outro. Como ele mesmo se achava
incorrigível, a família deve ter pensado a mesma coisa. Nem do filho ele sabe
mais.
Há menos de um ano V. está limpo. Não garante que não
vá ter outra recaída. Tem medo disso. Tenta, luta contra si mesmo. Para o
crime, diz que não volta.
E por que pombas de cargas d’água contei um pouco da
história do V.?
Porque V. provoca uma confusão mental das mais
violentas. Há seres incorrigíveis, há seres como V. ou há tudo que é tipo de
ser? É difícil cravar, bater o martelo, determinar. V. achava que era
incorrigível e hoje acha que não é, que ele é, sim, uma prova de que essa
teoria não existe. Basta o cara querer que se endireita.
V. é um ex-assaltante, praticava sequestros-relâmpago.
Tocava o terror e vendia os carros para o desmanche. Quantos pais de família
voltavam de um dia de trabalho e foram aterrorizados por V.? Quanta gente
honesta perdeu seus carros para os desmanches para onde V. levava as carangas
que roubava? Não dá pra concordar com ele. E a lei é clara: fez, pagou.
Transgrediu, deve ser punido. Deveria, por vezes não é, mas deveria.
Até o Portuga chegar eu fiquei sozinho com V. em uma
sala fechada. Havia duas alternativas: levantar, apontar o dedo e dizer “ladrão,
safado, fez muita gente sofrer, merece morrer” ou simplesmente esconder
celular, rádio e qualquer outro objeto que possa ter algum valor. Escolhi a
terceira opção: tocar a entrevista como se ele dissesse que a vida toda foi um
honesto balconista de padaria que trabalhava de dia e estudava à noite para
melhorar de vida. Deixei celular e rádio à mostra. Deus já perdoou o cara, quem
sou eu para condenar? V. disse estar curado e eu tinha que ser profissional,
ainda mais diante de uma das melhores entrevistas em quase uma década e meia
dessa vida sem rotina, sem sábado, domingo, feriado, festa de família etc.
A Cristolândia de Santos tem V. e mais 74. Isso só em
Santos. Tem tudo que é tipo de tratamento. E tem muita gente que precisa de um
apoio, de uma mão, uma palavra. Mãos para bater e palavras de agressão esse
povo já recebe na rua. Para ajudar a levantar são poucos. É um povo que chega
por vezes sob o efeito do último uso, com um cheiro muito forte, falando nada
com nada. Sentem fome, podem ficar agressivos, foram rejeitados. É um trabalho
difícil. Mas a vida não é fácil. Fácil é a vida no mundo virtual.
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