O garoto ficava assustado ao ver o pai gritar.
Muito assustado.
Chegava a torcer para a bola não entrar.
Era o pai motivado por uma partida de futebol. Uma das raríssimas transmissões para a praça onde era realizado.
Era um jogo em Santos, no Estádio Urbano Caldeira, ao mesmo tempo sendo mostrado na televisão do apartamento no Bairro Aparecida.
Era o Santos em campo.
O garoto não entendia, mas de alguma forma aquilo tudo mexia com o pai contido, discreto, elegante, que não expunha e dificilmente iria expor seus sentimentos.
Nunca foi obrigado a gostar daquele esporte que consistia em colocar 22 marmanjos atrás de uma bola e quem conseguisse acertar aquele retângulo branco ficava feliz. Muito menos foi forçado a gostar daquele time que ora vestia branco ora listrado em branco e preto e para quem as coisas pareciam difíceis, trabalhosas, mas que quando conquistadas davam um orgulho e uma felicidade indescritíveis.
Podem ter sido as manhãs de sábado dedicadas a ver os treinos in loco. Poder estar perto daqueles jogadores só vistos pela televisão, entrevistado por repórteres que eram de carne e osso e estavam ali, a centímetros de distância. Dificilmente foi a primeira partida acompanhada no estádio, quando o medo dos fogos de artifício disparados da arquibancada desviou a atenção do garoto e possivelmente do goleiro Marola, que, quando enfim localizado pelos olhos do garoto, buscava a bola no fundo das redes no gol de empate do Botafogo de Ribeirão Preto.
"Aí...não presta atenção", disse o torcedor ao lado.
Falava de Marola e, sem querer, falava do garoto.
Não foi fácil ao garoto atravessar os 90 minutos da semifinal do Campeonato Brasileiro de 1983. O Atlético Mineiro tinha um time maravilhoso e a partida era no Mineirão. O Santos se defendeu como pôde. O alento veio com a expulsão de Reinaldo. O alívio, quando a partida terminou. Claro que o Flamengo era melhor, mas o Santos tinha Serginho, aquele mesmo atacante que quando estava no São Paulo era odiado pelo garoto, por tantos gols que marcava no Santos. O mesmo Serginho que fez o pai do garoto ir à Vila Belmiro no dia de sua apresentação e ali, em meio à multidão e agora dando a mínima para os fogos, o garoto subiu no colo da tia para ver o futuro artilheiro de seu time ir embora em um Fiat 147.
O placar de 2 a 0 no Morumbi dava a certeza. O gol de Baltazar a tirou. Poderia pesar no Maracanã. Pesou. Estava 2 a 0 para o Flamengo e o garoto achando que dava para reverter. Ah, Adílio...deu o tiro me misericórdia aos 44 minutos do segundo tempo. Um chute no sofá simbolizou o sentimento. Não deu, não rolou, já era, Perdeu.
Mas quem liga? Foi no mesmo canto direito do sofá posicionado em frente à TV. Um pulo, um grito, mais pulos, pulos sem fim. Serginho havia marcado o gol. O Santos estava vencendo o Corinthians. O título paulista de 1984 havia chegado.
Depois dele, chegaram os anos seguintes. Derrotas, desesperança, amadorismo. Adolescência, competitividade, clássicos, vitórias, jogos decisivos, derrotas. Carimbar a faixa do campeão era suficiente.
Não, não era, mas tinha que parecer que era.
Algumas vitórias sobre o Corinthians, gol de voleio, Guga. Ser o único time a vencer o campeão Palmeiras no Brasileiro de 1993. Vencer por 1 a 0 o soberano São Paulo.
Sim, pensar pequeno. Não conseguir nada e achar que era feliz.
O dinheiro era curto. A presença no estádio, rara.
Derrota por 4 a 1 no Maracana.
"Já era, deu Fluminense".
Não, deu Giovanni.
"Agora ninguém tira".
Márcio Rezende de Freitas tira.
Aumenta a frequência no estádio. Frio, chuva, presença.
"Não posso ir hoje. Vai lá e cobre o dia do Santos"
Era manhã de sexta-feira. A Rádio Atlântica entraria com o programa de esportes no ar em 1h30. Fala o técnico Emerson Leão. Hira de gravar e reproduzir mais tarde, ao vivo para a rádio.
Jornalista. Repórter esportivo. Cobertura do Santos.
A partir de agora não se torce mais. Não tem cabimento. Não é profissional.
Curioso. Você não grita 'gol' e as coisas continuam como sempre estiveram. Legal esse negócio de ficar inerte ante a explosão de um estádio. Olha esses torcedores. Parecem uns bobos...iguais a mim, que até outro dia era mais um bobo ali em cima.
"Aê, repórter filho da puta! Tu deve ser corintiano!"
Meu Deus, torcedor pensa assim. O cara tem que falar bem do Santos a vida inteira.
E até outro dia eu era mais um bobo ali em cima.
Não se xinga mais o cara que perdeu o pênalti. Não se cobra mais o time que sai de campo derrotado. Se pergunta, para obter informações. Nada mais do que isso.
"Agora entrevisto o Robert. Outro dia estava na arquibancada e gritei por um gol dele".
Profissionalismo. Sorrir para a câmera da TV e gravar uma passagem dizendo que o Corinthians estava na final do Campeonato Paulista de 2001, que o gol do Ricardinho fez o Morumbi ruir.
Moído estava o repórter. Alegria fingida para a emissora que ia muito além de Santos e exigia a cobertura imparcial.
Imparcialidade exigia transmitir a notícia.
A notícia era a classificação do Corinthians.
E isso exigia sorrisos no gramado do Morumbi.
"Luciano. Acho que consigo sorrir por oito segundos. Liga a câmera e eu vou gravar a passagem de primeira. Se eu errar, vai sem passagem mesmo".
Foi. Com passagem.
Contar no jornal a construção de um título inimaginável naquele momento. Descrever a partida em que tudo aconteceu, até o inesperado: o dia da redenção. Sim, algumas lágrimas rolaram depois, às escondidas, longe de tudo e todos.
Só a geração de 2002 para provocar isso.
"Não, não vou comemorar esse título". E a buzina do Gol 97 preto ficou gasta com a comeoração do Brasileiro de 2004.
Alguns anos afastado do esporte. A taça veio de helicóptero.
O retorno. Ver o time campeão pela primeira vez in loco e logo uma Libertadores. Viagens ao exterior, oportunidades jamais pensadas, quase impossíveis de serem executadas em condições normais.
Obrigado, Santos Futebol Clube.
Vi 35% de sua vida. Espero ver e relatar muito mais.
Um feliz aniversário.
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